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O antes e o depois em coro com o aquiagora

Meu querido amigo e artista que muito me inspira Welket Bungué me fez o convite de escrever sobre algo que me atravessa para o seu blog.Periférico, este espaço de encontro de pensamento, fala e ouvido que ele vem construindo ao longo de sua circulação engajada pelo mundo. Antes de começar, preciso fazer uma ressalva: os pensamentos que me impulsionam a escrever este texto estão em estado de mutabilidade. Eu sempre tive dificuldade de expor ideias escritas porque sei o quão importante são para mim as conversas. Minha cabeça é aquosa, os pensamentos ganham outros tons e fazem curvas a partir dos encontros, se contaminam com eles, e a escrita, de certa forma, fixa as coisas. Por isso, peço para que você que me lê receba as reflexões contidas aqui como um sopro que, ao caminhar junto com o ar, incorpora partículas de outros ares. Ressalva feita, me permito brisar numa frase trazida no processo vivido por mais de 100 pessoas no teatro que integro há dez anos.


Foto: Maitê Arouca

Universidade Antropofaga, 5a dentição, Teat(r)o Oficina, São Paulo, 2022


Estávamos numa ágora de teatro da 5a Dentição da Universidade Antropófaga - que é, a grosso modo, a residência artística do Teat(r)o Oficina, um espaço que se abre de tempos em tempos para cultivar a troca, a transmissão da tecnologia e saberes desse terreiro de teatro multimídia que tem, hoje, 63 anos de existência ininterrupta - quando uma das atrizes diretoras da companhia se referiu a uma frase que ouviu num exercício de teatro anos atrás cujo objetivo era treinar a capacidade de se manter presente: nem antes nem depois, mas aqui agora.


O Teat(r)o Oficina é, também, um terreiro povoado, ritualizado e cultivado por muita gente e espécies vivas e tem uma história vastíssima de re-existência cultural e transmutação que vale a pena procurar, para quem não conhece. A Universidade Antropófaga segue nessa toada e sua quinta edição foi especial por ter reassumido uma parte importante do seu corpo: a adoração pela pluralidade do encontro radicalizada na junção de mais de 100 artistas de todos os cantos deste Brasil de 2022. O teatro fica no Bixiga, coração de São Paulo, bairro que é visto como uma periferia do centro e que tem uma ancestralidade de ocupação ligada a quilombos, povos indígenas, imigrantes, classe trabalhadora, migração nordestina e artistas vindos de muitos lugares. Além da gente, é lá onde estão situadas as sedes da escola de samba Vai-Vai, a Casa1 - centro cultural e de acolhida LGBTQIAP+, a Casa de Dona Yayá, o TBC - primeiro teatro de companhia de São Paulo, a Casa de capoeira, samba, rodas e cultura baiana do Mestre Ananias, as casas do norte, os cortiços, os espaços de shows de brega e forró, o pomar irrigado pelo Rio Bixiga, que é de onde recebemos o chamado para que ali vire um parque cultural no último chão de terra livre do centro de São Paulo, além de outros espaços-viveiros de manutenção de culturas que enfrentam no dia-a-dia a violência do poder neoliberal e neocolonial.


Começo fazendo esse breve descritivo histórico para situar o chão desta interpretação acerca do tempo passadopresentefuturo. Este que é um tema que desperta bastante interesse e abriga em si grande dedicação da filosofia, das artes, das ciências, das rodas de conversa. Outro dia, eu estava ouvindo um podcast que falava sobre um dos conceitos filosóficos de Bergson em que se sugere outra maneira de entender o passar do tempo: ao invés de passar, ele se acumula. Lina Bo Bardi, arquiteta do Teatro Oficina, também já havia nos presenteado com boas imagens quando disse que "o tempo linear é uma invenção do ocidente. O tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim".


Foto: Bruna Massarelli

Universidade Antropofaga, 5a dentição, Teat(r)o Oficina, São Paulo, 2022


Ao ouvir a frase que solicitava a radicalidade da presença "nem antes nem depois mas aqui agora", fui me transportando para as minhas primeiras aulas de atuação. Lembro que uma das direções era algo como: "antes de entrarem na sala de ensaio, vocês precisam deixar o RG e o CPF lá fora". Era o jeito do professor dizer que ali era um espaço onde era preciso se concentrar na criação e não nas coisas do cotidiano. Outras vezes na vida de atriz, ouvi que era importante deixar de lado quem somos e de onde viemos quando pretendemos entrar num estado de criação onde a presença se faz essencial para a troca. Faz sentido porque nos coloca diante do imprevisto e com abertura sutil para receber. E é um interessante deslocamento de si para ser trabalhado num exercício. Mas pensar isso como um fundamento que volta e meia é repetido, pode vir a se tornar um bloqueio na instância do impulso criativo, ou seja, naquela coisa que faz alguém ter coragem de se exprimir em alguma linguagem artística.


Fiquei pensando nesse paradoxo que há na arte desse meu ofício que é atuar quando o corpo que atua vem lugares de existências desprivilegiadas.


Foto: Jennifer Glass

Universidade Antropofaga, 5a dentição, Teat(r)o Oficina, São Paulo, 2022


Quando eu atuo, eu ajo. Atuação está intrinsecamente ligada à ação. E ação se faz com tudo o que se tem pra jogo. Então como agir no presente sem levar em conta os impulsos pré-lógicos de quem sou, a construção imagética de onde vim, a concretude de onde estou, e o desejo que parte do meu corpo e que me indica onde vou? E se eu trouxer para o presente meu corpo todo, composto de dois braços com dez dedos nas duas mãos, pernas que têm um alongamento duvidoso, meus ombros rígidos, minha vontade de sorrir alto, meu pensamento rápido que responde e logo depois duvida, tudo o que meu olhos leram e o que deixaram de ler, e o que meus ouvidos ouviram, minhas muitas memórias físicas e desejos íntimos, ao invés de repetir o que é feito estruturalmente, que é o abandono da minha subjetividade? Essa é uma imagem meramente ilustrativa, só que não.


A cara de quem faz arte no Brasil tem mudado, aos trancos e barrancos, mas tem e a arte agradece. Muitas pessoas artistas periféricas como eu têm chegado ao centro onde, em grande parte dos espaços, a linguagem pré-estabelecida não dá conta das linguagens vindas das periferias do mundo. E a partir desse deslocamento sugere-se que essas linguagens sejam moldadas ao formato de um certo bom gostismo. As condições impostas a nossos corpos periferizados nos instruem, de modo subjetivo, a negar o que sabemos expressar simplesmente porque o exemplo do que é belo e bom é outro e é único. Era muito comum nos moldarmos a esses crivos, mas isso está sendo revirado na força do desejo! Quando uma pessoa marginalizada (no sentido geográfico) deseja ser artista, e vem de um lugar onde o que se cria nem é considerado arte, o que é construído como arte na imaginação dela? Quais linguagens emocionam e inspiram essa pessoa? E ainda, se é pela necessidade de produzir beleza no mundo, de que beleza estamos falando?


Eu, por exemplo, comecei a exercitar atuação dançando quadrilha junina no meu bairro quando era criança, imitando personagens de filmes e novelas, cantando na igreja, apresentando coreografia de boys band norte americana na rua e as músicas que a gente inventava. A possibilidade de fazer arte salva, e muito, os corpos periferizados no Brasil porque ela desenha possíveis horizontes quando instaura a possibilidade de criação e validação do espaço íntimo de imaginação. Quando isso acontece, o universo inteiro dentro da gente muda pois, quando há horizonte, há movimento. Quando o percurso é sair das margens vive-se um deslocamento radical no corpo e é muito importante saber o que se leva junto para firmar o passo da existência. E para a criação, tudo é matéria prima. Tudo o que hoje é tradição é fruto da visão de mundo de alguém, uma pessoa, uma comunidade, um povo, só que algumas são sustentadas enquanto outras destinadas à imobilidade, ao fetiche ou ao folclore. No entanto, é importante acionar um alerta para uma cilada do casamento entre o neocolonialismo e o neoliberalismo: de um lado, o abandono do que nos constitui em direção ao pensamento hegemônico e do outro, a confiança extrema na selfie como indivíduo único e, portanto, especial. Quando esquecemos que além de indivíduos somos também sistemas. É preciso certa dose de dúvida de si no momento em que o mundo tem transformado nossos desejos e dores em produto, sem que sequer percebamos.


Me pergunto: o que podemos fazer para ir na contramão da lógica da capitalização da persona já que estamos conseguindo reconfigurar os lugares de referência e revelar a arte no nosso corpo, dos nossos olhos? O que podemos fazer para não perdermos as oportunidades de nos surpreender com os instrumentos e repertórios de quem contracena conosco? E, ainda, como contracenar com espaços que são anteriores a nós e que são sustentáculos de vida, alegria e re-existência, sem deixar de atuar com o nosso corpo crítico-criativo? Atuar junto, agir junto levanta uma força motriz de bando que modifica qualquer atmosfera ou, no mínimo, provoca catarse de cura e estabelece sacações de mudança.


Então o dia é hoje, o ano é 2022, e aqui estou, no presente, fazendo exercícios de teatro a cada dia, e penso: será que o aquiagora exige que me desvencilie dos outros tempos para que ele exista? Será que dá para fragmentar o presente, passado e futuro de cada pessoa e também do espaço em que elas se encontram?


Comecei a me sugerir conscientemente um agir de mãos dadas com os tempos e para além do meu corpo, ao invés de agir na lógica consecutiva, linear e hierárquica dos tempos. Saber ouvir, receber e contracenar com as coisas, com a memória das coisas, do meu corpo, das pessoas, da cidade, da casa-teatro, do bairro ou do país, com os desejos dos outros, e com os meus, e com a força de outras vidas não humanas que coabitam o mesmo espaço e que dizem muita coisa. Com o que foi, com o que é, lidando com o movimento e com a concretude da vontade de comer. É tudo junto. Me sustento em carregar comigo o caos de todas as vidas que me criaram, que vivi e dividi, quem fui e o que não sei, quem são, quem foram e o que podem vir a ser todas as outras existências que contracenam comigo nesse espaço do agora, a descobrir. Friccionar a troca, tentar não se fiar muito no medo de errar, legitimar diferentes perspectivas e experiências de mundo, ímpares, pares, múltiplas ou comuns, bater cabeça para outras entidades, agir em função de enxergar belezas, as que imagino e as que você imagina, transar elas com o espaço, com o desejo de cada ser vivente que ocupa o mesmo chão, incorporar a ancestralidade e o desejo inclusive do próprio chão, não negar o que veio antes de mim e continuar me permitindo projetar o que vem depois, isso tudo é o que alimenta minha plena devoção ao presente e é o que faz assentamento dele no meu corpo.


Foto: Jennifer Glass

Universidade Antropofaga, 5a dentição, Teat(r)o Oficina, São Paulo, 2022


Se esse espaço de povos de teatro não tivesse levado consigo o fio de todos os tempos que atravessou, desejando e se firmando no presente onde ele existe, não estaríamos tão ardentes como estamos depois dessa 5a dentição de viração da Universidade Antropófaga. Homenageio e agradeço todas as pessoas que se fizeram presentes e trouxeram para o centro daquele vale seus repertórios pessoais, coletivos e ancestrais e se permitiram receber a presença e a magia desse terreyro que é sagrado, mas que tem a sabedoria de continuar entregando seu corpo à bigorna.


por Nash Laila | sobre o Teatro Oficina Uzyna Uzona

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